Viçosa, maio de 2015,

 

 São 7 horas da manhã, e eu acabo de chegar à casa do Fabrício Vassali, na Violeira, zona rural de Viçosa-MG, onde montamos um estúdio de gravação. Passaremos os próximos três dias captando contos, coros, vozes e instrumentos. Será o disco Vozes da mata, o primeiro registro sonoro do trabalho do Farinhada. Enquanto o café vai ficando pronto, eu olho pela janela aberta para a montanha, no meio da roça, e por alguns minutos me perco pensando que foi ali que pisaram os meus antepassados mais longínquos e lembrando dos contos do meu avô e das canções da minha avó. Farinhada foi o primeiro a acordar e já está sentado do lado de fora, com o violão em punho, a entoar os versos que aprendeu distante.

 Eu falei com o Chicó, eu nunca gravei assim em estúdio não. Os meninos vão participar né, o Julio, o Padero, a Adê, o Fabricio, os meninos do maracatu, do congado, a gente faz tudo junto e misturado mesmo. Bom que a gente vai ficar o tempo todo aqui, igual é nas festas populares. Come junto, trabalha, celebra, faz a cultura. O que eu vejo que as pessoas ainda não entenderam muito é esse tempo. O tempo da cultura popular, da educação popular, não é o tempo do relógio. O que é este tempo que precisamos seguir? O que venho fazendo até aqui, tá muito dentro daquilo que eu me inseri, que é o movimento popular. Vou colocar isso no disco, em forma de música, de história, de fala mesmo.

Convivemos aqui, durante estes dias de gravação, com educadores populares, artesãos, estudantes e professores  Universidade Federal de Viçosa (UFV) – todos envolvidos na discussão da educação popular, da agroecologia e da cultura popular. Uma experiência educativa em que ética e estética caminham juntas, transformando a casa (e o disco) em um espaço sensível e reflexivo, em um diálogo entre teoria, prática, arte e política. Após dois anos de pesquisa e andanças pela Zona da Mata de Minas, nessa imersão coletiva para a gravação de uma coletânea de cantos e contos, pesquisados pelo grupo a partir do olhar de Farinhada, passamos por esses momentos de que fala Freire, da teoria e da prática, da arte e da política, de criação e recriação. 

Gravar um disco com o Farinhada é traçar um amplo panorama político e histórico de Minas Gerais. Na contramão das imposições culturais feitas, seja pela colonização, seja pela elite, seja pela mídia, Farinhada consegue guardar pela sua experiência e das pessoas com quem se encontra, a força que é narrar a própria história pelo canto, pela poesia oral, pelo bater e tocar dos seus instrumentos. Consciente da sua função nesse lugar de educador e narrador, Farinhada segue perpetuando uma visão muito particular, um olhar de quem vê e vem de dentro, generoso nos detalhes, registrando e divulgando versos, causos, contos, canções e anedotas que ouviu nos interiores de Minas Gerais e do Brasil.

 Escolhemos o suporte da gravação em disco para provocar uma experiência de escuta. A nossa modalidade é a oralidade. Numa espécie de comunhão, eu sei que o que está sendo feito aqui, embora não seja uma biografia do Farinhada, traz uma carga emocional e afetiva experimentada na vida. É na narrativa do Farinhada que busco os caminhos para a produção de um material sonoro que possa ser artístico e educativo – na dimensão freiriana desses termos. Antes de começar a definir o repertório, fizemo-nos a seguinte pergunta: “o que queremos levar para o ouvinte?”.

Ao escutar a fala de Farinhada, “quando a cultura está enraizada nas pessoas elas não aceitam nenhum tipo de dominação”, me parece muito claro que o disco que estamos produzindo é uma experiência artística que assume sentido político. 

Convidei a minha avó para ir à gravação e contar uma história. Ela ficou horas ali no nosso estúdio volante, acompanhada pela minha mãe, contando um causo – o mesmo que eu ouvi durante toda a infância, e por fim trouxe uma canção que cantou com a minha mãe. Depois de muitas conversas, na troca com Farinhada, arrematamos:

Esse disco vai ser avó, vai ser mãe, vai ser bisavó, vai ser matriarca, vai ser vida e ancestralidade. Indígena. Negra. Rezadeira e fiandeira. Quilombola. Agricultora.

 

Aline Cântia é narradora de histórias, jornalista, Mestre em Estudos Literários e Doutora em Educação. Desde 2011 é presidente do Instituto Cultural AbraPalavra.

Leave a Reply